Saudade que chega sem pedir permissão, perguntas sem respostas, despedir-se daquela vidinha tão esperada e ficar impotente diante deste adeus. Estas são algumas feridas das guerreiras que tem a gestação interrompida espontaneamente antes da 20ª semana de gravidez.
Aproximadamente 10 a 20% das mulheres sofrem o aborto espontâneo, e isso vale para todas as gestações, incluindo os casos de sucesso da reprodução assistida. A maior parte das perdas gestacionais isoladas antes da 20ª semana é consequência de alguma alteração genética no embrião, o que impede a sua viabilidade e continuação da gestação.
Entretanto, a ocorrência repetida de abortos espontâneos pode se configurar como aborto de repetição, podendo estar associado a outros fatores que devem ser investigados. Infelizmente, em pelo menos metade dos casos não há uma causa detectável que justifique as perdas repetidas.
Para que você entenda melhor sobre o assunto, preparamos o texto de hoje com as principais informações e dúvidas sobre o aborto de repetição. Confira!
O que é aborto de repetição?
O aborto de repetição, também conhecido por abortamento recorrente ou aborto habitual, pode ocorrer entre 0,3 a 1% das gestações.
A definição deste mal é controversa. Segundo a American Society for Reproductive Medicine (ASRM), aborto habitual é definido por duas ou mais perdas (não necessariamente consecutivas) em mulheres que tiveram o diagnóstico da gravidez por ultrassonografia ou biópsia (análise das células do embrião que saíram do útero).
Já para a European Society of Human Reproduction and Embryology, são necessárias 03 ou mais perdas gestacionais antes da 20ª/22ª semana de gestação para confirmar o quadro de aborto recorrente. Nesta última definição, a gestação pode ser confirmada apenas por teste de gravidez positivo.
No Brasil, não há consenso na definição deste quadro. Tendo em vista o impacto emocional e o sentimento de luto inerente às “mamães de anjo”, a clínica CEFERP tem investigado o quadro a partir de duas perdas gestacionais confirmadas por teste de gravidez ou ultrassonografia.
A condição do aborto de repetição inclui uma gama de mulheres com histórias reprodutivas distintas e uma grande variedade de condições clínicas associadas, fato que contribui também para a falta de padronização quanto à investigação das causas e as condutas adotadas.
Os abortos podem ser precoces (quando ocorrem antes de 12 semanas de gestação — três meses, aproximadamente) ou tardios (quando as perdas gestacionais ocorrem entre 12 e 20 semanas — três a cinco meses).
É importante ressaltar, ainda, que essa condição traz grande estresse emocional e físico para as mulheres e familiares envolvidos, de forma que é necessária grande sensibilidade da equipe que investiga e acompanha cada caso.
Quais as causas mais frequentes do aborto de repetição?
A grande questão relacionada ao aborto de repetição é que, em boa parte das vezes, as causas não podem ser detectadas, o que pode gerar frustração na paciente e seus familiares. Por isso, detalhamos, a seguir, as principais causas de aborto de repetição.
Idiopática (sem causa detectável)
Em aproximadamente 50% dos casos não é possível identificar o fator determinante associado às perdas gestacionais recorrentes. Entretanto, após consulta com um especialista e realização de exames, entre 50 a 70% dos casais conseguem ter um bebê.
No entanto, essa taxa depende do número de perdas gestacionais e de outras características da mulher que têm influência na fertilidade (idade, taxas hormonais, etc.).
Nesses casos, o comum é indicar que a mulher adote hábitos de vida saudáveis, que auxiliam no cuidado à fertilidade como um todo. Normalmente, todas as mulheres que estão tentando engravidar são orientadas a usar ácido fólico também.
Trombofilias
São a principal causa detectável de aborto precoce (diagnosticadas em aproximadamente 8 a 42% dos casos). A trombofilia é uma doença relacionada à alteração da coagulação sanguínea que favorece a obstrução dos vasos pela formação dos coágulos.
Quando estes coágulos obstruem os vasos da placenta, existe um risco aumentado para a ocorrência da perda fetal/embrionária, pois o embrião deixa de receber o aporte sanguíneo placentário, essencial para o seu desenvolvimento.
Algumas das principais trombofilias que podem se relacionar com o aborto recorrente são:
- Síndrome do anticorpo antifosfolípide (SAF ou SAAF);
- Mutação do fator V de Leiden (trombofilia hereditária mais comum);
- Mutação do gene da protrombina;
- Deficiência de proteína C e proteína S;
Deficiência de antitrombina, entre outras.Esta condição apresenta possibilidade de tratamento efetivo, com boas chances de ter um filho saudável após medidas adequadas de terapia antitrombótica.
Genética
As causas genéticas representam a segunda causa mais frequentemente diagnosticada de aborto habitual precoce (2 a 5% dos casos). Clinicamente, esta condição pode se manifestar como um quadro de “ovo anembrionado”, no qual a ultrassonografia mostra o saco gestacional sem embrião.
Entretanto, cuidado! Dependendo da fase da gestação e do tamanho do saco gestacional, o embrião pode não ser visualizado porque não houve tempo para ele se desenvolver e, nesta situação, o exame deve ser repetido entre 10 e 14 dias.
O diagnóstico da causa genética de abortamento habitual pode ser realizado pelo aconselhamento genético após a realização do cariótipo (exame realizado para avaliar se existe alguma alteração nos cromossomos maternos e paternos). As alterações genéticas mais comuns relacionadas ao aborto de repetição são alterações numéricas ou estruturais dos cromossomos.
Em algumas situações, a biópsia do embrião obtido através da reprodução assistida (diagnóstico pré-implantacional) pode ser necessária para a seleção de embriões não acometidos pela alteração genética detectada nos pais.
Alterações anatômicas
Em relação às perdas gestacionais tardias, as alterações anatômicas do útero representam as principais causas. Nesse grupo, podemos incluir as alterações congênitas (as pacientes já nascem com a alteração) ou aquelas que possam surgir ao longo da vida.
Algumas malformações congênitas incluem:
- Útero difelfo: o útero é duplicado, apresenta dois hemiúteros, com colo uterino duplo e até canal vaginal duplo, em alguns casos;
- Útero bicorno: presença de membrana que divide o fundo do útero (cornos uterinos) em dois lados separados, pode ser desde uma pequena divisão até a divisão completa do órgão;
- Útero unicorno: útero com metade do tamanho normal, que só se estende para o lado de um ovário e tem apenas uma tuba uterina;
- Útero septado: presença de septo no meio da cavidade uterina.
Outras alterações anatômicas do útero incluem a incompetência istmo cervical (o colo do útero não consegue ficar fechado ao longo da gestação), mioma, pólipos e sinéquias (“cicatrizes” na parede interna do útero – o endométrio).
As alterações uterinas podem causar aborto de repetição por alterar a conformação da parede uterina interna, de forma que podem impedir o desenvolvimento do embrião no endométrio. Várias dessas alterações podem ser tratadas por procedimentos cirúrgicos, de forma que permitem a gravidez posteriormente.
Endócrinas
Diversas alterações endócrinas podem estar associadas com o aborto de repetição. Algumas das principais alterações são:
- Hiperprolactinemia: essa condição leva a alterações no eixo hipotálamo-hipófise-ovário (eixo da estimulação hormonal), o que traz consequências para o ciclo menstrual, como anovulação e abortamento espontâneo;
- Doenças da tireoide: as doenças autoimunes da tireoide, isto é, com a presença de hormônios antitireoidianos, podem estar associadas à ocorrência de aborto de repetição, principalmente se o quadro não estiver bem controlado;
Outras alterações endócrinas que podem estar associadas são: diabetes mellitus tipo 2, obesidade, falência precoce do ovário, entre outras.
Imunológica
Trata-se de um tema polêmico no abortamento de repetição. A autoimunidade representa a produção de anticorpos contra o “próprio corpo”. Algumas doenças autoimunes podem ser causa de perda gestacional recorrente, como, por exemplo o lúpus associado a alterações na coagulação.
Essa relação entre aborto recorrente e fatores imunológicos é descrita também devido à aloimunidade, reação imunológica contra o que não é “próprio” do organismo, ou seja, contra o que o nosso corpo não reconhece como nosso.
Como metade dos genes do embrião é herdado do pai, o corpo da mãe pode entender que o bebê que está sendo gerado não é “próprio” do seu organismo e, com isto, produz anticorpos para eliminá-lo. Por isto, para ocorrer uma gestação normal e saudável, deve ocorrer a “tolerância imunológica” (mãe não produz anticorpos contra o embrião).
Quando esta tolerância não existe, podem ocorrer diferentes respostas imunológicas: aumento dos linfócitos tipo NK (natural killers) uterinos, interleucina, desequilíbrio funcional entre os linfócitos Th2 (pró-gestacionais) e Th1 (anti-gestacionais), etc. Entretanto este mecanismo é teórico e ainda não há consenso sobre o tratamento de causa imunológica.
A imunização materna com linfócitos paternos (ILP, conhecida como “vacina”) e gamaglobulina intravenosa são terapias descritas neste caso, mas seu benefício não foi comprovado e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) proibiu esta prática no nosso país.
Ambientais e Hábitos/estilo de vida
Quimioterapia, radioterapia, exposição a gases anestésicos e mercúrio, tabagismo e uso de outras drogas (como cocaína, por exemplo), consumo abusivo de álcool e café, entre outras, podem ser causas de aborto de repetição. Normalmente, o quadro é cessado após a interrupção da exposição ao agente causador do problema.
O ideal é que a mulher que deseja engravidar faça uma consulta com o médico para verificar seu estado de saúde geral e abandone os hábitos nocivos que podem dificultar ou impedir a gravidez e, posteriormente, se configuram como risco para uma gestação saudável.
Infecção
Embora algumas bactérias (Chlamydia, Mycoplasma, Streptococcus e Ureaplasma) possam estar associadas a aborto de forma isolada, a causa infecciosa não é motivo de abortos de repetição.
É importante também destacar que existem fatores de risco para a ocorrência de aborto de maneira geral, como por exemplo a idade da mulher, visto que com o passar da idade, o risco de alterações genéticas nos óvulos é maior, podendo formar mais embriões também com alterações genéticas.
Quais os exames necessários para o diagnóstico?
Como mostramos, existem diversas causas que podem estar associadas ao aborto de repetição. Para que a investigação do caso possa ser feita de forma adequada, o primeiro passo que a mulher ou o casal deve tomar é procurar um médico especialista em reprodução humana, que é o profissional melhor capacitado para investigação e acompanhamento dessa condição.
A investigação é iniciada durante a consulta, com realização de entrevista detalhada com a mulher e o parceiro. O médico busca identificar hábitos de vida e outras condições que podem estar associadas aos abortos, além de colher a história do problema atual e antecedentes das gestações anteriores. Posteriormente, é realizado um exame físico para identificação de alguma alteração visível.
Por fim, o médico solicita os exames para avaliação dos diferentes órgãos e sistemas que podem estar relacionados ao problema. É importante esclarecer que a investigação deve ser guiada de acordo com o quadro clínico do casal e principais suspeitas, portanto, não necessariamente serão pedidos sempre os mesmos exames.
Os principais exames incluem:
Pesquisa de trombofilias
São colhidos através de exames de sangue, respeitando-se um intervalo desde o último aborto de no mínimo 90 dias, para evitar resultados falso positivos. Geralmente são as pesquisas de mutações (como as citadas acima no texto) e/ou anticorpos para SAAF.
Dosagens hormonais
Podem ser realizadas para pesquisar alteração de eixos hormonais que podem interferir no ciclo menstrual, como por exemplo o eixo da tireoide.
Exames gerais de sangue
Podem ser solicitados exames de sangue para verificar o estado de saúde geral da mulher e rastrear possíveis comorbidades (diabetes, alteração no colesterol, etc.). São solicitadas também as sorologias para investigação de doenças infecciosas que podem estar associadas.
Exames de imagem
Os exames de imagem permitem a visualização do útero, tubas uterinas e ovário e identificação das malformações e alterações uterinas. Esses exames incluem ultrassonografia transvaginal, histeroscopia, entre outros. Eles podem ser solicitados de acordo com as possíveis suspeitas de cada caso.
Cariótipo materno e paterno
Estudo do material genético dos pais em relação à quantidade e estrutura dos cromossomos, que permite a identificação de alterações cromossômicas.
Se nenhum dos exames apontarem qualquer anormalidade, o aborto de repetição pode ser classificado como idiopático.
A reprodução assistida pode resolver o meu problema do aborto recorrente?
A reprodução assistida pode ser o tratamento definitivo da causa genética do aborto habitual. Quando existe alguma alteração genética no cromossomo dos pais com risco de transmissão para os filhos, a reprodução assistida com formação de embriões seguida da biópsia pode ser uma opção para se obter um bebê saudável até o fim da gravidez.
A biópsia do embrião é realizada pela técnica do diagnóstico pré implantacional (PGT), ou seja, o casal é submetido a FIV com formação de embriões que serão congelados após a retirada de algumas células (biópsia). A seguir, é realizado o estudo genético nas células dos embriões e o embriologista seleciona os embriões saudáveis para a transferência.
Os embriões acometidos pelo problema genético ficam congelados e também podem ser transferidos, mas há maior risco de abortamento ou alteração no bebê. Assim, o PGT — Doenças Gênicas, torna realidade o sonho de muitos casais porque evita que doenças familiares sejam transmitidas de geração a geração.
Após vários abortos, tenho chance de ter um bebê saudável?
Apesar da ausência de uma causa detectável na maioria dos casais com abortamento recorrente, após a investigação aproximadamente 50-70% dos casais apresentam um bebê saudável sem qualquer tratamento. Entretanto, existem algumas particularidades a partir do diagnóstico da gestação e do seguimento pré-natal que podem trazer benefícios.
O médico especialista é o responsável por buscar as causas do aborto de repetição e propor tratamentos específicos e direcionados de acordo com o caso, resultados de exames e desejos dos envolvidos.
O mais importante é que o médico identifique as necessidades do casal, tenha um diálogo franco e se mantenha a disposição para esclarecimento de dúvidas, angústias e frustrações.
Para seguir em frente, é preciso estar seguro e acreditar que o futuro pode acomodar aquela saudade que fica, a cicatriz que aperta! E neste contexto, o acolhimento não só por palavras, mas principalmente por atitudes e planejamento pode trazer a felicidade de volta às “mamães de anjo”!
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Referências:
- Lund M, Kamper-Jørgensen M, Nielsen HS, Lidegaard Ø, Andersen AM, Christiansen OB. Prognosis for live birth in women with recurrent miscarriage: what is the best measure of success? Obstet Gynecol. 2012;119(1):37-43.
- Kolte AM, Bernardi LA, Christiansen OB, Quenby S, Farquharson RG, Goddijn M, Stephenson MD; ESHRE Special Interest Group, Early Pregnancy. Terminology for pregnancy loss prior to viability: a consensus statement from the ESHRE early pregnancy special interest group. Hum Reprod. 2015;30(3):495-8.
- Practice Committee of the American Society for Reproductive Medicine. Evaluation and treatment of recurrent pregnancy loss: a committee opinion. Fertil Steril. 2012;98(5):1103-11.
- Practice Committee of American Society for Reproductive Medicine. Definitions of infertility and recurrent pregnancy loss: a committee opinion. Fertil Steril. 2013;99(1):63.
- Zhang M, Xu J, Bao X, Niu W, Wang L, Du L, Zhang N, Sun Y. Association between Genetic Polymorphisms in Interleukin Genes and Recurrent Pregnancy Loss – A Systematic Review and Meta-Analysis. PLoS One. 2017;12(1):e0169891.
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Vanessa Fernandes Vitro
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Boa tarde! Li o seu artigo e sou uma dessas pacientes com aborto de repetição. Um pouco de minha história, consegui engravidar após 02 anos de tentativas, tive uma gestação normal, tenho hoje um filho que irá completar 7 anos. Após 1 ano, engravidei novamente, fiz primeiro US normal (batimento cardíaco, tamanho embrião), 3 semanas depois sangramento e resultado que o embrião havia parado de desenvolver. Tive o aborto espontâneo junto com hemorragia…tive mais 1positivo e aborto, procurei especialista e o DIAGNÓSTICO: trombofilia e doença autoimune, engravidei normalmente e iniciei com as medicações, aborto novamente….enfim, foram 4 abortos…meu emocional ficou extremamente abalado, casamento quase acabou. Quero ter mais um filho mas preciso de ajuda! Moro no interior Estado SP. Espero contar com orientação…. Brinco que sou um caso para ser estudado.
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CEFERP
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Oi Vanessa,
Primeiramente um abraço, sentimos pelas suas perdas.
Para que seja possível indicar algum tratamento é preciso passar por consulta com o especialista.
Estamos em Ribeirão Preto, interior de São Paulo, se tiver interesse em agendar uma consulta seguem nossos dados abaixo:
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Equipe CEFERP – Centro de Fertilidade de Ribeirão Preto
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